Diz-se que agosto é mês de desgosto. Pelo andar da carruagem, novembro quer assumir a alcunha este ano. Joseph Blatter, presidente da Fifa, já declarou que poderá vir pessoalmente ao Brasil nesse período para aparar, de uma vez por todas, as arestas com o governo federal sobre a legislação que regulamentará a realização da Copa do Mundo de 2014.
O meio de campo político desse encontro permanece conturbado: além de um conjunto de escândalos e acusações direcionadas ao ex-ministro dos Esportes, Orlando Silva – que vinha intermediando as negociações –, segue uma falsa disputa que envolve, de um lado, os entes federativos e, de outro, as instituições organizadoras, em torno de um conjunto de alterações legislativas e medidas administrativas de caráter excepcional. No centro da discussão, o Projeto de Lei n. 2.330/2011, a chamada Lei Geral da Copa, apresentada em setembro ao Congresso.
A tendência desconcertante, contudo, é que essa queda de braço se transforme, paulatinamente, num caloroso aperto de mão. Afinal, ambos os lados parecem admitir, ainda que com pequenas divergências, que a recepção de um megaevento esportivo como esse autoriza também megaviolações de direitos, megaendividamento público e megairregularidades.
Ex-porte: negócios privados, ônus público
Este é o padrão do modelo empresarial assumido pelo Mundial de Futebol e pelas Olimpíadas em suas edições anteriores: especulação imobiliária em Barcelona, remoções maciças em Pequim, superendividamento na Grécia, higienização social na África do Sul. Tais casos são sintomas de que já não está em jogo o esporte, mas, primordialmente, o leque de possibilidades econômicas a ele vinculado. E, como em toda atividade capitalista, também aqui emerge um esforço bastante weberiano dos agentes de mercado por garantir previsibilidade e calculabilidade para seus investimentos.
Essas garantias são, amiúde, traduzidas na forma de uma demanda das empresas, dos consórcios e das instituições financeiras por maior segurança jurídica em suas transações. Concretamente, a Fifa tem sido o canal de vazão desses interesses, a partir do conjunto de contratos de caráter particular entabulados com os países anfitriões e cidades-sede, desde o momento de sua candidatura. Cadernos de Encargos, Matrizes de Responsabilidade e Host City Agreementsestabelecem uma série de exigências aos países, muitas das quais representando, na prática, significativos prejuízos à sua própria população.
Portanto, uma equação de ganhos e perdas que não é equânime. É preciso urgentemente questionar a legitimidade social desse tipo de relação de vassalagem política, que endossa um bloco de negócios privados gerador de considerável ônus público.
Ordem e desordem jurídica
Vale dizer: a maior parte dessas movimentações se processa à revelia ou em contradição com os próprios ordenamentos jurídicos nacionais. Por esse motivo é tão importante para organismos como a Fifa a aprovação de mudanças na legislação interna dos países. A atual proposta de Lei Geral da Copa, por sua vez, é também fruto de pressões desse tipo e se insere num panorama mais amplo de mutação jurídica encomendada.
Perante as diversas leis e atos “de exceção”, a dúvida que resta é se direitos fundamentais constitucionalmente considerados cláusulas pétreas, isto é, princípios intocáveis pelo próprio Poder Legislativo, podem ser abolidos ou atropelados por acordos com a Fifa e o COI. Processo semelhante de desconstrução de direitos não é novo no Brasil, e têm sido reiteradas as tentativas de enfraquecê-los. Uma das estratégias mais frequentes nesse campo é a utilização de medidas provisórias, que, de instrumentos de exceção, passaram a constituir ferramenta cotidiana de ingerência imediata do Executivo: com Fernando Henrique Cardoso, foram editadas 82 delas; com Lula, 72.
Parafraseando Giorgio Agamben, é possível afirmar que quando a exceção se transforma em regra, ou melhor, quando regra e exceção se mostram indistinguíveis, ordem e desordem jurídicas se confundem, e o paradigma da política tem no campo, seja ele de extermínio, de concentração ou de refugiados – e, talvez, em nosso caso, o de futebol –, sua principal referência e imagem da exclusão.
Interesses enviesados e oportunidades políticas
Sujeitas a essa dinâmica, outras alterações legais precedem a própria Lei Geral. Inúmeras formas de isenção fiscal, por exemplo, têm sido disciplinadas em diplomas, como o Decreto n. 7.578/2011. É igualmente central na engenharia jurídica da Copa a recente Lei n. 12.462/2011, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, ou simplesmente RDC, um verdadeiro atalho à Lei de Licitações. Não por acaso, essa brecha foi aberta com a picareta de uma medida provisória, a MPV n. 527, de 2011. Aliás, uma não, mas várias, pois, na realidade, foram necessárias quatro tentativas do governo e sua bancada congressual até a aprovação definitiva da lei. Em todas elas, foram inseridos a posteriori os respectivos artigos em normas que versavam sobre temas diversos. No caso da MPV n. 527, os enxertos foram levados a cabo num texto que originalmente dispunha sobre a criação da Secretaria de Aviação Civil. Antes dela, as MPVs n. 489 e n. 521 haviam perdido eficácia por falta de apreciação, e a MPV n. 503 fora rejeitada, ainda em 2010. Uma trajetória no mínimo curiosa para uma lei que regulamenta o destino de dezenas de bilhões de reais. Para ser mais exato, R$ 112 bilhões, segundo um estudo elaborado pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB), parceira, inclusive, da CBF.
Diante de tais evidências, não se sustenta o discurso oficial do “legado”. Há outros interesses mais prementes e menos anunciáveis em pauta, entre eles a repercussão política de hospedar os jogos, marco que deveria simbolizar a projeção definitiva do Brasil como protagonista regional e internacional. Nenhuma oportunidade melhor do que uma Copa no “país do futebol” para festejar o baile de debutante do novo global player. Em nome desse objetivo, vale forjar consensos e escamotear os conflitos sociais emergentes, manipulando o imaginário ufanista que o evento naturalmente suscita. Valem também barganhas políticas nas quais entra até mesmo o novo Código Florestal, que tampouco saiu ileso da avalanche de modificações legais em marcha: já foi introduzida no Senado a possibilidade de desmatamento em Áreas de Preservação Permanente para as obras relacionadas à Copa do Mundo.
O jogo dos sete erros
Num contexto como esse, a proposta de uma Lei Geral da Copa surge como mais um pacote de violação de direitos e de abertura de precedentes incômodos em nossa legislação, com os quais, mais cedo ou mais tarde, teremos de nos haver. Para além do alarmismo sobre as pressões e ameaças da Fifa, é imprescindível uma avaliação cuidadosa de ao menos sete dos principais pontos críticos do projeto:
1. Proteção da propriedade industrial
Trata-se da criação de um “regime especial” de procedimentos para pedidos de registro de marcas, emblemas e demais “símbolos oficiais” da Fifa junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), para fins de proteção de propriedade industrial. Contudo, não há qualquer restrição ou definição sobre o significado do termo “símbolos oficiais”, que pode abranger, efetivamente, qualquer imagem, ideia e mesmo expressões linguísticas. Mais de mil itens já foram objeto de requisição de registro pela entidade, entre eles o nome das cidades-sede e até o numeral “2014”. De fato, estamos diante de um processo de privatização da cultura por meio da constituição de direitos de uso exclusivistas. Para piorar a situação, o artigo 5º, §1º, I do projeto de lei prevê que “o Inpi não requererá à Fifa a comprovação da condição de alto renome de suas marcas ou da caracterização de suas marcas como notoriamente conhecidas”, deixando, na prática, a cargo tão somente da arbitrariedade da organização a escolha do menu de bens imateriais que monopolizará.
2. Direitos de imagem, som e radiodifusão
Na mesma tônica segue o capítulo sobre captação de imagem, som e retransmissão dos jogos e eventos paralelos. Aqui, a Fifa é considerada “titular exclusiva” de todos os direitos a eles relacionados, podendo impedir a presença da imprensa – como, em todo caso, já ocorreu durante o sorteio das eliminatórias, em julho – e selecionar os “flagrantes de imagem” de tempo limitado que disponibilizará para uso não comercial em noticiários e congêneres.
3. Áreas de restrição comercial
Outra decorrência importante da Lei Geral da Copa diz respeito às restrições e condicionantes impostas ao direito de ir e vir e à livre-iniciativa. De acordo com o artigo 11 do projeto, seria concedida “à Fifa e às pessoas por ela indicadas a autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua” em locais como imediações de estádios e suas vias de acesso. Essa disposição implica uma proibição de venda ou exposição de quaisquer mercadorias dentro desses perímetros que não obtenham permissão expressa da entidade, impactando fortemente o comércio local e os trabalhadores ambulantes. Ademais, sugere a possibilidade de demarcação de territórios de interdição, com a instalação das chamadas Zonas de Exclusão, podendo inviabilizar ou dificultar, inclusive, o funcionamento de equipamentos públicos essenciais próximos, como escolas e hospitais.
4. Venda e preço de ingressos
Ignorando direitos do consumidor, a proposta de lei oferece à Fifa amplos poderes para determinar tanto o preço quanto as regras de compra e venda, alteração e cancelamento de ingressos. Tais critérios poderão ser estabelecidos unilateralmente e sem aviso prévio pela entidade, nos termos do artigo 33, incluindo-se a supressão do direito de arrependimento e a permissão da prática comercial abusiva da venda casada.
Não bastasse isso, a pressão do organismo avança sobre assuntos ainda não constantes da proposta entregue ao Congresso. A intenção declarada da Fifa é suspender também parte do Estatuto do Torcedor, do Estatuto do Idoso e do Código de Defesa do Consumidor, para anular o direito de meia-entrada para estudantes e idosos. Os brasileiros, ao que tudo indica, não estão convidados para a festa em sua própria casa.
5. Tipos penais, sanções civis e juízos especiais
Especialmente alarmante, no projeto, é a confecção de três tipos penais específicos, os crimes de “Utilização indevida de símbolos oficiais”, “Marketing de emboscada por associação” e “Marketing de emboscada por intrusão”, de natureza pontual e temporária. Acompanhando as penas de detenção e multa, um conjunto de sanções civis relacionadas à venda de produtos, uso de ingressos e atividades de publicidade. Medidas como essas desconsideram todas as críticas à tendência de hiperpenalização já acentuada na política criminal brasileira e à punição seletiva do sistema penal. Os pobres continuam sendo, afinal, seus “clientes preferenciais”.
Fechando o circuito de criminalização da espontaneidade, o artigo 37, timidamente inserido nas disposições finais do projeto, permite criar juizados especiais, varas, turmas e câmaras especializadas para causas relativas aos eventos. A disposição, nesse caso, é flagrantemente inconstitucional e pretende instituir uma justiça paralela dentro do sistema vigente, na esteira do modelo sul-africano, que inovou com a criação de 56 Tribunais Especiais da Copa. A legislação aplicada por esses tribunais de exceção também se mostrou absolutamente desproporcional: condenações de quinze anos por furto de uma câmera fotográfica e distinções entre turistas brancos e negros fizeram parte da lista de absurdos da edição de 2010. No Brasil, ministros do STF, como Marco Aurélio Mello, já se manifestaram desfavoráveis à proposta. Resta saber se seguiremos ou não o rastro de repressão da Jabulani.
6. Vistos de entrada e permissões de trabalho
A ideologia da soberania, que em alguns momentos tanto atormenta o Estado brasileiro, não parece causar celeuma diante de pressões externas. Para a Copa do Mundo de 2014, a combinação é no mínimo inusitada: proibições de acesso para cidadãos brasileiros e liberação sumária do ingresso para membros, funcionários, parceiros, convidados, delegados ou clientes da Fifa. Segundo consta no projeto de Lei Geral, seria suficiente sua credencial para afastar qualquer discricionariedade na concessão de vistos de entrada em território nacional, assemelhando o país a uma gigantesca arquibancada. A síntese é a seguinte: instalação de fronteiras internas no espaço de nossas cidades e dissolução das fronteiras externas sob o ditame de organismos internacionais. Basta comprar seu ingresso.
7. Responsabilidade da União
Por fim, como todo empreendimento necessita de garantias, a Fifa soube escolher bem as suas: ninguém menos que a própria União deve assumir a responsabilidade por danos e prejuízos causados à entidade. Pela forma como se encontra redigido o artigo 30 do projeto de lei, não se trata apenas de responsabilidade civil pessoal. Ao contrário, a União responderá amplamente por “todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos eventos”. Nada poderia ser mais genérico e, em última instância, quase toda eventualidade se enquadraria nessa formulação, aumentando substancialmente a conta da Copa do Mundo em reparações e indenizações com verbas públicas. A situação é kafkiana. O Estado brasileiro tornou-se de repente, não mais que de repente, o fiador da Fifa em seus negócios particulares.
Batendo bola, mas também panela
Num balanço geral, o horizonte é suficientemente caótico para justificar inquietação. Algumas reações têm sido esboçadas por movimentos sociais, setores da academia, órgãos e instituições de fiscalização e defesa de direitos. A Relatora Especial para o Direito Humano à Moradia Adequada da ONU, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana já se manifestaram, reconhecendo a existência de motivos de sobra para preocupação.
No tocante às alterações legislativas, foram ajuizadas até o momento duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra o RDC. A mais abrangente delas, interposta pelo Ministério Público Federal, questiona diversos aspectos formais e materiais da lei. Isso parece indicar que o campo judicial será um dos espaços de disputa acerca do modelo imposto de realização do evento, a exemplo do que atualmente ocorre com outros grandes projetos, como a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
A sociedade não está omissa nem pretende assistir passivamente a esse processo. Nas doze cidades-sede dos jogos do Mundial já existem Comitês Populares de composição ampla, os quais têm saído às ruas e se posicionado de maneira crítica, a favor do esporte, mas contra sua utilização como desculpa para violações de direitos, mau uso de recursos públicos, criminalização da pobreza, limpeza étnico-social, mercantilização e militarização das cidades brasileiras. Desde 2010, esses atores encontram-se organizados também numa Articulação Nacional Popular dos Megaeventos, produzindo contrainformação, mobilização e resistências. O pontapé inicial está dado. Mesmo que o Estado se recuse a assumir seu papel de árbitro justo nessa partida, os movimentos populares não estão dispostos a retirar seu time de campo.
Leandro Franklin Gorsdorf
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.
Thiago A. P. Hoshino
Assessor jurídico da organização Terra de Direitos e membro do Comitê Popular da Copa de Curitiba
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