Paris – Os titãs do futebol mundial estão acostumados às mordomias. Batedores. Proteção policial. Hotéis cinco estrelas. Jantares luxuosos. Diárias de 500 dólares por dia, e 250 dólares adicionais para suas esposas ou namoradas.
Os 24 integrantes do comitê executivo da FIFA — a associação que governa o futebol e organiza a Copa do Mundo — formam a elite de um clube masculino, faturando salários e bônus anuais de até 300 mil dólares, além de várias outras mordomias. Para isso, tudo o que precisam fazer é aparecer em alguns encontros privados, anualmente, para discutir regras, sanções e questões legais e, mais importante, para eventualmente votar no país que vai sediar o campeonato mundial.
Agora esta elite está sob pressão como nunca, com um deles, Mohamed bin Hammam, do Catar, acusado de pagar propinas para membros de escalões mais baixos na tentativa de derrubar o antigo presidente da FIFA, Sepp Blatter. Ao mesmo tempo, permanecem em aberto questões sobre como a Rússia e o Catar foram escolhidos para sediar as copas de 2018 e 2022.
Mas o topo da FIFA é um santuário tão dourado que poucos especialistas acreditam que a debatida investigação ética interna do caso Bin Hammam, marcada para os dias 22 e 23 de julho em Zurique, vai levar a mudanças fundamentais.
“Não é [um espaço] democrático, nem governado pela transparência”, disse Gunter Gebauer, um professor de filosofia esportiva da Universidade de Berlim, na Alemanha. “É uma cultura masculina de dar e receber e fazer e prestar favores. É uma cultura que em alguns aspectos é a mesma de uma gangue”.
De fato, enquanto Bin Hamman enfrenta uma investigação ética, ele é apenas um dos nove integrantes do comitê que foram acusados de receber propinas nos últimos dois anos, a maioria referentes a votos para escolher a sede da Copa do Mundo.
Na FIFA, parece ter havido nos últimos anos uma linha fina separando uma cultura de proteção mútua e outra de corrupção aberta. Essa ambiguidade assustou Graham Taylor, ex-jogador de futebol britânico que gerenciou uma das equipes nacionais do Reino Unido, quando ele serviu brevemente no comitê assessor técnico da FIFA, de 18 membros, no início dos anos 90. Durante um encontro do comitê na Suiça que foi aberto com “um jantar de cinco estrelas, seguido por um almoço de cinco estrelas” depois de uma reunião no dia seguinte, ele achou estranho o ritual pelo qual os integrantes do comitê formaram uma fila.
“Nós fizemos fila como meninos e recolhemos nosso dinheiro”, disse Taylor. “Um homem na fila me disse que eu deveria pedir a devolução do dinheiro da passagem aérea, embora ela já tivesse sido paga pela FIFA. Ele disse: ‘Peça tudo de volta e abra uma conta bancária na Suiça. Depois de alguns anos o dinheiro vai acumular’”.
Apesar das nuvens que se acumulam sobre a organização, alguns informantes na família FIFA insistem que a organização está limpando a casa. Chuck Blazer, um norte-americano no comitê executivo que denunciou Bin Hamman no caso da propina, disse que o trabalho do comitê de ética demonstra que ele é independente e tem “dentes reais”, já que confrontou Bin Hamman e outro poderoso executivo da FIFA, Jack Warner.
Nações que competem por eventos reclamam que os padrões éticos da FIFA são tão ambíguos que membros do comitê não conseguem distinguir entre fazer negócios ou fazer negociatas. Particularmente, eles citam o programa “legado” da FIFA, que encorajou nações-candidatas a sediar torneios a financiar projetos de desenvolvimento do futebol. A Austrália, por exemplo, contribuiu com cerca de 300 mil dólares para que o time sub-20 de Trinidad e Tobago disputasse um campeonato em Chipre. A contribuição foi dada através de Warner, que pediu demissão em conexão com as acusações contra Bin Hammam.
“Foi um grande erro quando eles falaram que, para se candidatar, era necessário deixar um legado e quando ‘legado’ foi definido”, disse Blazer. “As pessoas cairam em armadilhas ao lidar com essa questão”.
Embora Blazer tenha sido apontado como alguém que denunciou corrupção, no domingo ele enfrentou críticas por um arranjo pelo qual sua empresa num paraíso fiscal, a Sportvertising, recebeu 10% dos contratos de patrocínio e direitos de TV da Confederação de Futebol da América do Norte, Central e do Caribe (CONCACAF). O arranjo foi primeiro denunciado por Andrew Jennings, um jornalista investigativo do Reino Unido que tem trabalhado com a BBC. A companhia de Blazer, registrada nas ilhas Cayman, recebeu pagamentos de milhões de dólares anualmente, de acordo com Jennings.
Blazer disse que o contrato foi parte de seu “pacote de compensação” e uma fórmula bem sucedida para “dar incentivos e resultados”, quando a confederação ainda não tinha renda.
Durante sua campanha para ganhar para o Reino Unido a Copa do Mundo de 2018, Lord David Triesman disse que testemunhou pessoalmente pedidos óbvios de propina. Ele diz que está confuso pelo fato de a FIFA não investigar os integrantes do comitê executivo ou acusações feitas por ele.
“Não sei como isso é possível no mundo moderno, porque vivemos em um mundo transparente”, Triesman, o ex-presidente da federação de futebol britânica, disse em uma entrevista. “Para um conselho relativamente pequeno, houve suficientes críticas para você imaginar que ele se perguntariam ‘estamos fazendo direito?’”.
Ao testemunhar diante de um comitê parlamentar sobre esportes e cultura no Parlamento britânico, Triesman disse que foi pressionado por quatro integrantes do comitê executivo da FIFA em diferentes oportunidades, inclusive com um convite aberto: “Venha e me diga o que tem para mim”.
De acordo com Triesman, os pedidos foram de 2,5 milhões de dólares para a academia de uma escola em Trinidad — com o dinheiro entregue através de Warner — a direitos de televisão para um jogo amistoso entre Inglaterra e Tailândia para homenagear a coroação do rei da Tailândia.
Na semana passada, o comitê parlamentar britânico divulgou seu relatório final, declarando que estava chocado com as acusações de corrupção e alertando que “a FIFA tem dado a impressão de que pretende varrer as acusações para debaixo do tapete”.
Desde que foi fundada em 1904 em Paris, a FIFA se tornou uma organização extremamente rica, com reservas de cerca de 1,3 bilhão de dólares e lucro no ano passado de 1,2 bilhão de dólares em direitos de televisão e marketing em todo o mundo. Ela também se beneficia da isenção fiscal na Suiça para organizações esportivas, uma ajuda considerável que começa a levantar debate político nos cantões suiços à luz dos vários escândalos de corrupção.
“Eles tem as mesmas vantagens das associações de canto locais, mas são muito maiores”, disse Roland Buechel, um integrante do Parlamento suiço.
“Não posso concordar com isso se eles não se comportarem adequadamente”.
Por causa das isenções fiscais, Buechel se disse particularmente preocupado com um item do mais recente relatório anual da FIFA, divulgado em junho, que incluia “benefícios de curto-prazo para executivos”, sem especificar quais. Um total de 32,6 milhões de dólares, 55% a mais que no ano anterior, foram pagos a integrantes-chaves do gerenciamento da FIFA, inclusive a membros do comitê executivo.
Como o dinheiro foi dividido, exatamente, é um segredo, o mesmo se aplicando a informações básicas da FIFA, como os salários dos executivos — mais um exemplo da falta de transparência da entidade, que trabalhou com a One World Trust, uma organização sem fins lucrativos, em 2007, para avaliar seus padrões de transparência mas não adotou muitas das recomendações do grupo.
“Há uma forte diferença entre o que a organização diz que está fazendo e a forma como ela funciona”, disse Michael Hammer, diretor-executivo da One World Trust, uma organização baseada em Londres que desenvolve padrões de governança e de decisões executivas.
Hammer disse que o dinheiro da FIFA “foi usado como forma de influenciar a maneira como a organização toma suas decisões”, começando com os salários do comitê executivo — criados por Blatter em 1998, logo depois de sua eleição. “As pessoas tinham incentivos para trabalhar com o presidente de forma a não perder sua renda”, ele disse.
Os lucros e as mordomias criaram uma atmosfera na qual a elite dos integrantes da família FIFA começaram a pensar em si como especiais, de acordo com especialistas e pessoas envolvidas com as nações que disputaram sedes de eventos de futebol.
Alguns integrantes do comitê executivo viajaram para países que disputavam eventos exigindo projetos de desenvolvimento, disse Bonita Mersiades, uma ex-chefe de assuntos corporativos para o projeto da Copa do Mundo na Austrália: “Este é um grande eufemismo para dinheiro. Você nunca sabe o que acontecerá com esse dinheiro”.
Os integrantes do comitê executivo viajam como dipl0matas, evitando as alfândegas e atravessando as cidades em caravanas protegidas pela polícia. As nações que disputam a Copa enchem estes homens de presentes: abotoaduras de pérola, bolsas Burberry e caixas de vinho fino.
“Eles são colocados nos hotéis mais luxuosos, transformados no que se chama de ‘clubes FIFA’”, disse Alan Tomlinson, um professor e diretor do Centro de Pesquisas em Esportes da Universidade de Brighton, na Inglaterra. “É uma versão moderna dos velhos castelos medievais, patrulhados por guardas do lado de fota. Quando vi os membros do comitê executivo da FIFA entrando e saindo destes clubes, eles pareciam muito desconfortáveis ao encarar o mundo real”.
Desde que foi suspenso do comitê executivo, Bin Hammam tem evitado entrevistas, justificando apenas com uma nota: “Não estou em posição de falar”. Mas ele publicou recentemente uma declaração em seu blog pessoal reclamando de vazamentos e de uma investigação comprometida.
Sua esperança, ele escreveu, é que qualquer decisão a respeito do caso fique dentro da família FIFA — o comitê de ética — e não seja baseada “na vontade das pessoas de fora”.
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