quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A Copa do Mundo no caminho das comunidades pobres

Do Sul 21





Ramiro Furquim/Sul21
Felipe Prestes
A princípio, a melhoria nos transportes deverá ser um dos principais legados da Copa do Mundo. Mas, por onde passam, avenidas, corredores de ônibus, trilhos de trem e pistas de aeroportos devoram casas de gente humilde. As remoções são uma constante nas cidades-sede, geralmente levando as pessoas para bem longe das áreas centrais e jogando-as para onde não têm transporte adequado, creches, hospitais.
No último final de semana, integrantes da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa se reuniram na Grande Porto Alegre para trocar experiências. E na segunda-feira (23), integrantes dos comitês de nove cidades-sede foram levados para um tour pelos locais da capital gaúcha onde moradores estão sendo afetados por obras relacionadas ao megaevento.

Capim onde era para estar a creche da Nova Dique | Ramiro Furquim/Sul21
A primeira parada foi a Nova Dique, para onde estão sendo removidas as 1.476 famílias da Vila Dique, que fica na cabeceira do Aeroporto Salgado Filho. O novo local fica cerca de 9 km mais longe do centro da cidade que o antigo. A urbanista Cláudia Fávaro, integrante do Comitê Popular da Copa de Porto Alegre, aponta que as pessoas estão sendo submetidas ao pagamento de taxas que não precisavam pagar anteriormente, para viver nas casas padronizadas que têm 38 m² ou 42 m². Cláudia afirma que as casas já estão apresentando rachaduras e que, pelo modo como foram construídas, as rachaduras são uma tendência, não exceção.
A comitiva passou por um lote de capim onde era para ficar a creche. As primeiras remoções começaram em 2009, mas até agora não há creche. O posto de saúde está de pé, mas não funciona. A arquiteta aponta também que o galpão de reciclagem é bem menor que o necessário para o trabalho dos catadores, bem como as unidades comerciais que estão sendo construídas para quem trabalhava com comércio na Vila Dique. No caminho até a Nova Dique, pela Freeway, os integrantes da articulação nacional puderam ver a dicotomia entre a moderna Arena do Grêmio e os casebres ao lado, e constatar a pressão que a especulação imobiliária deve fazer sobre a área nos próximos anos.

Darci: "Queremos que garantam que somos os donos destas casas" | Ramiro Furquim/Sul21
Moradores do Morro Santa Teresa cobram do governador regularização fundiária
No Morro Santa Teresa, à beira do mirante que é um dos pontos turísticos de Porto Alegre, com vista para o Estádio Beira-Rio, o líder comunitário da Vila Gaúcha, Darci Campos dos Santos, falou sobre o assédio que os moradores de quatro comunidades do morro sofreram do Governo do Estado em 2010. A proximidade com o estádio que sediará a Copa do Mundo despertou o interesse de empreiteiras e do Governo Yeda.
Um projeto de lei que autorizava a venda de uma área da Fase, de 74 hectares, onde estão quatro comunidades e uma área de mata preservada, acabou não sendo votado na Assembleia Legislativa. “Política e feijão, só na base da pressão”, ensinou Darci, que mora há 36 anos no local. “Criei nove filhos aqui”, faz questão de ressaltar.
Agora, o atual governo sinaliza com a regularização fundiária dos moradores e com a construção do “Parque da Copa” na área preservada. O líder comunitário quer maior celeridade na regularização e quer que os moradores participem do projeto do parque. “Se não for assim, não aceitaremos o parque”. De ações concretas do governo, até agora, apenas um muro cercando as comunidades. “Queremos que garantam que somos os donos de nossas casas. Vamos acelerar a pressão nestes quatro anos. Se entrar depois um governo como aquele de São Paulo, estamos ferrados”, diz Darci.
Do alto do morro, também se avista uma ocupação do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), ao lado do Beira-Rio, que deverá ser removida. Os moradores perderão uma de suas atividades econômicas que é a exploração de um pequeno estacionamento, que enche nos dias de jogos.

José Araújo, um dos atingidos pela Avenida Tronco: "Quero ficar" | Ramiro Furquim/Sul21
Avenida Tronco devorará centenas de residências
A duplicação de 3,4 quilômetros da Avenida Tronco é uma das obras viárias mais importantes para o megaevento. Ela absorverá o tráfego que ocorreria normalmente nas duas avenidas que margeiam o Estádio Beira-Rio (a Padre Cacique e a Edvaldo Pereira Paiva). Boa parte da extensão da avenida engolirá residências humildes, mas de alvenaria, além de estabelecimentos comerciais, atingindo pelo menos 1,6 mil famílias.
José Araújo, integrante do Comitê Popular da Copa, mora há 40 anos próximo à Avenida Tronco. O projeto de duplicação engolirá os fundos de sua casa. Ele não quer sair. Quer uma indenização pela parte de casa que perderá, mas continuar no bairro onde mora há tanto tempo. Mais conhecido como Zé, ele conta que a oferta inicial da Prefeitura para os moradores era que fossem para a Pitinga, localidade que fica quase fora de Porto Alegre. Os moradores responderam apontando áreas ociosas próximas de onde moram.
Zé repudia as alternativas levantadas até o momento, como a ideia de ser incluído no Minha Casa, Minha Vida, uma vez que já tem casa própria: “Construí minha casa, não quero sair e vou ter que pagar o Minha Casa, Minha Vida?”, questiona. Ele também relata que o valor de indenização que poderia ser pago aos moradores, de R$ 52 mil, torna impossível que não sejam empurrados para a periferia da cidade. “Não se compra nada aqui na volta por menos de R$ 100 mil”.
Rejeita também ir para um conjunto habitacional em que não possa vender a casa, uma vez que já é proprietário de uma casa. Além disto, diz que experiências semelhantes mostram que os moradores ficam anos esperando a casa ser construída e se mantendo com um aluguel social de ínfimo valor. “Quero ficar”, resume.
Na Zona Sul, a comitiva rumou para a parte rural de Porto Alegre. O geógrafo Felipe Viana, do Instituto Econsciência, uma ONG que luta pela preservação do cinturão verde no extremo Sul da cidade, explicou que integra o Comitê Popular da Copa porque a reforma urbana é essencial para a manutenção desta extensa área rural que Porto Alegre tem. Isto porque a incidência de condomínios populares nestas áreas periféricas é cada vez maior e a lógica de jogar os mais pobres para longe da área central da cidade aprofunda este impacto ao meio-ambiente.
Viana conta que a Câmara dos Vereadores mudou há alguns anos o status da zona rural de Porto Alegre para rururbana (que une características urbanas e rurais), o que permite a construção de condomínios residenciais, como os condomínios de luxo com terminação “ville”. Ambientalistas querem inserir a zona rural novamente no Plano Diretor. Além disto, vereadores têm classificado várias áreas da região como de “interesse social”, permitindo a construção de condomínios populares, financiados pelo Minha Casa, Minha Vida. Enquanto isto, o geógrafo aponta que há 48 mil imóveis ociosos na Capital.

Samuel está com uma marca verde em sua casa, no Bairro Montese, em Fortaleza. O verde não é de esperança, mas um sinal de que pode ser derrubada Ramiro Furquim/Sul21
Governo do Ceará quer mandar Samuel para 20 km longe do Centro
No encontro nacional, os comitês decidiram que as duas principais questões a serem trabalhadas em suas respectivas cidades são a Lei Geral da Copa e a divulgação de um dossiê que denuncia violações de direitos humanos nas cidades-sede, como a exploração de trabalhadores nas grandes obras e as remoções de moradores. Entre os integrantes da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa chama atenção a história de Samuel Queiroz, agente sanitarista, morador do Bairro Montese, em Fortaleza, há 34 anos. Ele é um dos atingidos pelo megaevento. Na esteira da Copa do Mundo, um veículo leve sobre trilhos (VLT) vai passar a cem metros da casa onde ele mora com a mulher e um filho.
O governo do Ceará quer remover a família de Samuel e mais 2,7 mil famílias por onde vai passar o VLT. E quer mandar todo mundo para um terreno a 20 quilômetros do centro de Fortaleza.
O governador Cid Gomes enviou uma Lei de Desapropriações para a Assembleia Legislativa para facilitar a construção dos trilhos. Segundo Samuel, a lei foi enviada em regime de urgência. Ele afirma também que o relatório de impacto ambiental do VLT desconsiderou a complexidade da remoção. “Foi um relatório fraudulento”.
Samuel vive próximo ao trabalho, vai “de bike”, tem linhas de ônibus a sua disposição que levam aos principais terminais de Fortaleza, dois hospitais próximos e a escola onde o filho estuda. No local para onde querem mandá-lo teria que deixar a “bike” em casa, pegar um ônibus e chacoalhar por mais de uma hora para chegar ao trabalho.
A casa onde mora está marcada em tinta verde pela empresa que construirá o VLT. Pode ser obrigado a sair a qualquer momento e ver a casa ser derrubada. Samuel vai ter que se virar, enquanto a casa a 20 km dali não fica pronta, com uma indenização de R$ 17 mil. O aluguel social no ínfimo valor de R$ 200 mensais é só para quem teve a casa avaliada em até R$ 16 mi. “Não dá para alugar nenhum imóvel em Fortaleza por R$ 200”. A esperança é uma ação da Defensoria Pública do Estado, que contesta as remoções. Uma das questões que o governo não contemplou é o fato de que as pessoas deveriam morar em no máximo 2 km de onde viviam antes.
Samuel conta que na comunidade do Mucuripe, composta em grande parte por pescadores, muitas pessoas também estão sem opção. Terão que ir para bem longe da comunidade tradicional, onde vivem há décadas. Já nos bairros mais nobres, os trilhos serão subterrâneos, para evitar ao máximo desapropriações. “Uma empresa do senador Eunício Oliveira, que fica quase do lado dos trilhos, não precisará sair de lá. Minha casa fica a cem metros”, afirma Samuel.

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