Entrevista por: Ricardo
Machado
Quem observa de fora pode imaginar
que o Rio Grande do Sul é um Estado mais politizado onde as violações aos
direitos humanos são menores e os abusos não ocorrem. Ledo engano. Apesar de
ser o único cujos estádios não receberam recursos diretos do governo federal
para suas obras – os próprios clubes são os responsáveis pelas dívidas –, as
obras de mobilidade urbana estão no centro do debate social. “As violações se
dão nas mais variadas esferas e uma das principais são as remoções forçadas em
detrimento das obras de infraestrutura. Nosso cálculo aponta que mais de 200
mil pessoas serão removidas no Brasil em função dos megaeventos. Esse número dá
conta também das pessoas que foram ameaçadas, mas que em algum momento
realizaram resistência e o governo recuou”, esclarece Claudia Favaro, em
entrevista por e-mail à IHU On-Line. Para ela, podemos esperar
pouco retorno dos investimentos realizados para o mundial e que a maior
contribuição está relacionada à possibilidade de se desenvolver uma cultura do
esporte como resgate à cidadania. “De resto é um grande negócio, uma venda de
imagem de cidades, uma venda de insumos de construção civil, uma venda de
territórios, uma venda de pessoas. São só trocas comerciais. Se o Brasil
conseguisse valorizar sua cultura sem colocar mulher pelada e carnaval, poderia
ter um retorno interessante para o país”, complementa.
Claudia Favaro, arquiteta e urbanista formada na Unisinos em
2008, trabalha com assessoria técnica a movimentos sociais, entre eles o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Faz parte do Comitê Popular
da Copa de Porto Alegre e é a representante do Rio Grande do Sul na articulação
nacional dos comitês populares da Copa.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como nasceu o Comitê
Popular da Copa?
Claudia Favaro – O comitê com este nome existe desde o final
de 2010 e nasceu depois da luta e derrubada do projeto de lei que tentava
alienar a área do Morro Santa Tereza, em Porto Alegre, por um valor irrisório,
que criou toda uma mobilização popular na cidade, sobretudo relacionado aos moradores
da região, e foi então que os movimentos sociais começaram a se organizar.
Depois, quando saiu a matriz de responsabilidades, entendemos que próximo desse
local estavam ocorrendo situações parecidas, de desapropriação e remoções, que
foi o que nos levou a discutir essas questões da Copa. Desde então o processo
vem se acelerando com a proximidade do evento. No final de 2010 ocorreram em
são Paulo e no Rio de Janeiro dois eventos importantes, em que se organizou de
maneira mais sistemática como iríamos pensar os impactos no Brasil do ponto de
vista do enfrentamento da especulação imobiliária tendo em vista os
megaeventos. Apoiadores e pessoas que viveram essas experiências em outros
contextos se reuniram com diversos atores da sociedade civil para compartilhar
esses conhecimentos. A partir dessas reuniões criou-se um encaminhamento para
que cada cidade criasse um comitê popular da copa para ter uma unidade no país
no que diz respeito a monitorar os impactos e denunciar as violações.
IHU On-Line – Qual o propósito do
trabalho dos Comitês Populares da Copa?
Claudia Favaro – Os comitês são locais, onde vários outros
grupos da sociedade civil, ONGs, movimentos sociais, universidades, órgãos
públicos – como o Ministério Público ou a Defensoria Pública – se organizam e
compõem tais entidades nas doze cidades-sede. Eles buscam monitorar os gastos e
ser um agente mobilizador da sociedade para garantir que os direitos humanos
não sejam violados e que se acelerem em detrimento da organização desses
megaeventos, seja ela o que for, Copa do Mundo, Olimpíada e, em Porto Alegre, a
questão da Fórmula Indy que está sendo discutida ultimamente. Todos eles têm
impactos muito característicos que ocorrem em função dessas violações pela
necessidade de reestruturação urbana. Há muitas pessoas que falam que é o
momento de repensar a cidade e de fazer grandes obras, mas os comitês
questionam esse tipo de projeto de cidade, o que há por trás dessa proposta
toda e quem paga a conta depois. Resumindo, a proposta do comitê é articular os
atingidos, as monitoras, as violações e dar voz aos mais variados setores,
principalmente os mais vulneráveis.
IHU On-Line – Quais são as principais
demandas dos Comitês Populares da Copa?
Claudia Favaro – As violações se dão nas mais variadas
esferas, e uma das principais são as remoções forçadas em detrimento das obras
de infraestrutura. Nosso cálculo aponta que mais de 200 mil pessoas serão
removidas no Brasil em função dos megaeventos. Esse número dá conta também das
pessoas que foram ameaçadas, mas que em algum momento realizaram resistência e
o governo recuou. Além disso, tem a questão da criança e do adolescente; do
tráfico de pessoas, que se intensifica muito; a questão da prostituição e da
violação das mulheres, sobretudo no Nordeste; a questão do trabalho, onde,
segundo a Lei Geral da Copa, os trabalhadores informais não podem ter sua fonte
de renda, o que prejudica uma camada da sociedade; os trabalhadores formais da
construção civil, que trabalham em jornadas muito extensas e que não têm o reconhecimento
financeiro merecido – muitas greves ocorreram e, até mortes, devido a toda uma
precarização que não é tratada nos meios de comunicação.
A violência institucional no que diz
respeito às forças de segurança. Tem uma lei muito preocupante, que é a chamada
lei do terrorismo. A repressão nas cidades está se agravando muito. Percebemos
isso em Porto Alegre, mas no Rio de Janeiro e São Paulo também está
endurecendo. O direito do cidadão de se manifestar está sendo colocado como
crime. Então, nossa democracia está sendo posta em dúvida.
IHU On-Line – Quem está em situação
de maior vulnerabilidade diante dos grandes projetos do Estado para a
realização desses megaeventos, como Copa e Olimpíada?
Claudia Favaro – São as pessoas que moram na cidade informal, que
adquiriram um espaço na cidade para sobreviver e terem suas rendas, mas que são
de fatos informais, pois não têm o título da terra, mas que moram nos locais a
mais de 30 ou 40 anos. Já existem leis previstas que garantem o direito à
propriedade dessas pessoas e, mesmo assim, estão sendo removidas de forma
violenta, porque não lhes dão alternativa. Ainda há as pessoas que vivem nas
ruas; a higienização e elitização dos espaços públicos só fazem com as que as
pessoas com mais acessos é que tenham direito ao espaço coletivo onde a cidade
passa a selecionar quem participa e quem não participa dela. Quem realmente
está sendo mais atingido é a população mais pobre. É claro que alguém vai
ganhar com Copa, haverão oportunidades sendo geradas, virão turistas, mas o que
vai gerar é do ponto de vista do capital, econômico e concentrado.
IHU On-Line – Quais foram as
principais conquistas até este momento?
Claudia Favaro – Em Porto Alegre, creio que conseguimos
avançar em muitos pontos, sobretudo no que se refere ao debate. Penso que a
cidade toda está discutindo a questão da Copa e isso para nós é uma vitória.
Passamos muito tempo debatendo com os próprios grupos, sobre as mais variadas
pautas, fazendo com que ele entendessem que esse processo irá se acelerar. Na avenida
Tronco, em Porto Alegre, por exemplo, a prefeitura sempre disse que não haveria
como deixar as famílias e que havia a necessidade de removê-las para pontos
distantes da cidade, nos condomínios habitacionais do Minha Casa, Minha Vida em
zonas periféricas. Essa era a solução inicial. Aprovaram-se e alteraram-se leis
para que isso fosse possível. O comitê, então, para fazer uma contestação,
indicou outras áreas no entorno da avenida para reassentamento. Isso foi uma
conquista importante, pois não houve deslocamento e essa postura traz dignidade
para as pessoas. O problema é que nenhum tijolo foi construído nesses terrenos
ainda. A licitação foi feita há mais de um ano, mas nada avançou e a prefeitura
vai para cima das famílias oferecendo aluguel social, que são políticas que não
resolvem os problemas e as violações se dão nesse espaço, nas alternativas que
são dadas às pessoas. Sem contar a falta de diálogo. Então, cada recuo da
prefeitura é um conquista nossa, porque nunca houve diálogo para chamar esses projetos,
sempre foi na base do Ministério Público, do fechar a rua, mas que representam
uma série de pequenas vitórias e que mantiveram a chama acesa até agora. A Lei
Geral da Copa, embora tenha havido algumas sutis e importantes mudanças,
continua sendo uma vergonha para o país. É inadmissível que um presidente
assine uma coisa dessas sem consultar nenhuma das esferas democráticas do
Estado.
IHU On-Line – Que desafios se
delineiam nos próximos dois anos até a realização dos jogos?
Claudia Favaro – O principal desafio é manter-se vivo,
manter-se na resistência. Os momentos que chegam são tenebrosos, basta ver o
que aconteceu com as árvores em Porto Alegre com a prisão dos meninos e meninas
que tentaram impedir o corte. A polícia está cada vez mais violenta, a
repressão às manifestações está cada vez mais intensa. Diálogo com os entes e
esferas públicas que não houve até agora não vai ter. Houve em Porto Alegre uma
aproximação importante da Defensoria Pública, que criou uma comissão interna
para tratar disso. Então, a dificuldade financeira que tínhamos para contratar
advogados para contestar os pedidos de despejo e remoção, por exemplo, foi
solucionada, sem contar que será importante para os próximos passos na questão
jurídica. Mais do que tudo isso, nosso desafio é se manter em pé e mobilizar a
sociedade em torno de tudo que está acontecendo no país, que não é uma coisa
tão tranquila, porque são hectares de terras passados à iniciativa privada,
enquanto as escolas estão caindo aos pedaços.
Além de tudo isso, o aumento do
endividamento dos municípios vai gerar uma dívida que levará anos e anos para
ser paga. E quem vai pagar por isso é a população mais vulnerável que lá na
ponta precisa de creche, de escola. Há também a precarização do trabalho e a
degradação do serviço público.
IHU On-Line – De que maneira
interesses públicos e privados se relacionam neste contexto?
Claudia Favaro – Os interesses convergem para um mesmo local,
o “desenvolvimento”. O desenvolvimento é importante, mas ele tem que ser
redistributivo, tem que ser inclusivo, tem que ser um desenvolvimento para
integrar as pessoas. Porém, quem está ganhando até agora com esse
desenvolvimento é o capital privado. O Estado, mais que em qualquer outro
momento, está operando sua máquina para fazer valer as exigências de uma
empresa privada como a Fifa. Para isso o Estado abre mão de diversas leis.
IHU On-Line – Quais foram os
principais abusos identificados pelo Comitê?
Claudia Favaro – A entrega de áreas públicas à inciativa privada,
pois onera o Estado. A questão das remoções e a forma como o Estado tem feito
isso. Por exemplo, sabemos que a ampliação da avenida Tronco, em Porto Alegre,
está relacionada não à questão de mobilidade urbana, mas para facilitar o
escoamento dos entulhos da implosão do estádio Olímpico e para a construção das
torres da OAS, que não interessa à população. A violência institucional está
desleal. Tivemos um despejo violentíssimo na avenida Padre Cacique, com
atiradores de elite e o Batalhão de Operações Especiais da Brigada Militar,
fazendo uma pressão terrível ao vivente que estava dentro daquela casa, seja
pelo motivo que for: é desproporcional. Tem também a privatização dos espaços
públicos, a repressão aos artistas e moradores de rua. Lembro que há dois anos,
quando os moradores de rua moravam embaixo do viaduto Otávio Rocha, em Porto
Alegre, a prefeitura lavava as paredes com jatos de água sem pedir para que
eles saíssem e molhavam todas as suas coisas.
Corte de árvores
A medida adotada pela prefeitura com
o corte de árvores não á solução para o problema de mobilidade da cidade. O que
melhora de fato é tratar de dar condições de as pessoas circularem sem a
necessidade do automóvel. Podem-se construir quantas pistas forem necessárias,
que em algum momento elas vão se tornar saturadas. E, na verdade, a construção
de seis pistas nem é para os carros, mas para a Fórmula Indy, que foi assinado
um contrato com o governo municipal e estadual. Então, a derrubada das árvores
é para a Copa, mas é para estes eventos também. Essas seis pistas que serão
construídas vão afastar cada vez mais o povo do Guaíba. Já existe o muro. Agora
vamos colocar mais uma avenida para chegar lá somente quem está de carro. Essa
é outra forma de ver a cidade e de “desintegrá-la” à cidade.
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