Na 5ª feira, 20 de junho, após a manifestação de mais de 1 milhão de cidadãos, a cidade do Rio de Janeiro foi palco de múltiplas manifestações de violência e, mesmo, barbárie. De um lado, como largamente documentado e divulgado pelas redes nacionais de TV, grupos encapuzados de agentes provocadores e bandos não identificados promoveram um quebra-quebra generalizado, que pouco tinha a ver com a manifestação que se encerrava e com os manifestantes que começavam a dispersar. De outro lado, a Polícia Militar do Rio de Janeiro lançou-se a uma caçada a todos os manifestantes e pessoas que se encontravam nas ruas em áreas centrais da cidade.
Bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas dentro de bares e restaurantes na Lapa, e os usuários eram perseguidos quando saíam para escapar aos efeitos do gás. O Hospital Souza Aguiar também foi alvo de gás, assim como a Estação de Metrô Carioca, para a qual se dirigiam pessoas que pretendiam voltar para casa. Motociclistas da PM, em espetáculo grotesco, aceleravam e atiravam gases e balas de borracha a esmo. Os depoimentos são muitos e convergentes: a ação da polícia não tinha por alvo os bandos envolvidos em quebra-quebra, nem objetivava dispersar os manifestantes. Ao contrário, tratava-se de encurralá-los, cercá-los, espancá-los, puni-los, enfim.
Por uma noite, o centro da cidade teve seu dia de “comunidade pacificada” pela polícia de Cabral e Beltrame. Por uma noite, segmentos da população tiveram a oportunidade de conhecer a face sombria e normalmente escondida da “pacificação”. Nada a ver com a imagem idílica difundida pela “favela pacificada” da novela das 9. A pacificação é a ordem imposta por força de ocupação, que a todos transforma, indiscriminadamente em suspeito e, consequentemente, em alvo: na favela, suspeito de ser traficante: na cidade, suspeito de ser “vândalo”.
Que táticas e procedimentos brutais exercitados nas comunidades e bairros populares se transformem em técnica de repressão política era uma evolução previsível. Tal evolução desvenda o que se está ensinando e aprendendo nos quartéis e escolas de polícia do Rio de Janeiro. Ameaça grave à democracia, herança maldita da ditadura e da militarização das políticas, é chegada a hora de dar um basta a práticas e opções que transformaram a brutalidade em arremedo de política de segurança pública e fizeram da caveira o símbolo de uma instituição pública responsável pela segurança dos cidadãos.
Numa escalada insana, o Batalhão de Operações Policiais Especiais ataca a Favela da Maré e deixa um rastro de 9 mortes. A repressão de manifestação nas proximidades da favela pela redução do preço das passagens que provocara duas mortes, na véspera, foi desta vez o pretexto para a ação “punitiva”. A diferença de classe se expressa no fato de que no centro da cidade foram usadas balas de borracha, na favela balas de chumbo.
Neste mesmo momento, projeto de lei de autoria do Senador Marcelo Crivella, relatado pelo Senador Romero Jucá, ex-líder do governo de FHC e de Lula, pretende implantar em nossa legislação o crime de terrorismo, e assimilá-lo a desordem provocada por manifestações públicas. O ovo da serpente está sendo chocado na estufa dos mega-eventos. E a Presidente Dilma Roussef, inconsciente ou cúmplice, em seu importante discurso à nação de 21 de junho limitou-se a denunciar os “vândalos” civis, silenciando sobre os bárbaros fardados e armados pelo Estado. É necessário impedir que este ovo da serpente seja chocado por um mídia anti-democrática e por um poder atemorizado e acuado pela extrema direita. Não à pacificação da cidade transforma-se, doravante, em bandeira democrática fundamental, a coesionar ainda mais as forças que exigem uma mudança de rumos neste pais.
Carlos Vainer
Professor Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional Universidade Federal do Rio de Janeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário