Iuri Müller/ Do Sul 21
Ainda que Porto Alegre tenha visto passar pelas suas ruas diversas e heterogêneas formas de manifestação nos últimos meses, a cidade já abrigava a atuação de coletivos e articulações sociais há mais tempo. Eram grupos que reivindicavam o direito de utilizar os espaços da cidade e questionavam as transformações urbanas que, se não fossem freadas, poderiam entregar importantes espaços de Porto Alegre para a iniciativa privada. Apesar de vitórias pontuais, em tempos de Copa do Mundo há insatisfação entre os moradores da Zona Sul que tiveram a vida modificada por obras como a duplicação da Avenida Tronco, que prevê a remoção de mais de mil famílias na Vila Cruzeiro.
Para o geógrafo Leandro Anton, coordenador do ponto de cultura Quilombo do Sopapo, situado no bairro Cristal, os novos movimentos, ainda que se espelhem em exemplos clássicos da luta social brasileira, se organizam de forma distinta e sofrem com alguma instabilidade. Em entrevista ao Sul21, Anton critica os métodos impostos pela Prefeitura de Porto Alegre nas remoções da Zona Sul – onde se utiliza de artifícios como o bônus moradia e o aluguel social – e afirma que o que acontece hoje já estava em curso desde a gestão do ex-prefeito José Fogaça, muito antes dos investimentos públicos para a Copa do Mundo.
Sul21 – Nos últimos meses, observamos em Porto Alegre o crescimento de diversos movimentos que não se estruturam da maneira como estávamos acostumados. Não têm o tamanho e a organização do MST, por exemplo, mas geraram uma forte repercussão no âmbito local.
Leandro Anton – Penso que uma característica bem marcante do que está acontecendo são as mobilizações que atuam dentro da cidade. A gente está num momento em que tem de fato grandes eventos, em especial Copa do Mundo, que afetam diariamente a vida da população. É um processo do meio urbano. Se pegar o caso de Porto Alegre, há atores bem novos neste processo, tirando algumas associações de moradores, que não são os articuladores do movimento principal, mas que estão sendo apoiadas para ter a garantia de seus direitos. Em geral são pequenos grupos, coletivos de atuação cultural, da área ambiental. Também participam militantes de grandes movimentos, como o MST, o movimento da luta pela moradia, que se integraram a esta articulação, mas de uma maneira distinta.
Com relação ao que aconteceu aqui em Porto Alegre, penso que é bem importante que houve uma explosão de um processo que vinha sendo construído na questão dos aumentos de passagens nos últimos três, quatro anos, mas que não tinha atingido esta intensidade. Nesse mesmo período, outros movimentos se articularam, como o Comitê Popular da Copa e a luta pelo morro Santa Tereza, que já tem outro recorte e vinha sustentando uma discussão com relação à cidade. Mas eram extremamente localizados, um movimento digamos comunitário. Não quero distinguir movimento comunitário de movimento social, mas a escala é outra. É um movimento social, sim, local, mas que não tem essa capacidade de propôr um projeto de país, por exemplo.
Outra coisa interessante de se ver são os exemplos do Massa Crítica em Porto Alegre, de situações como o Largo Vivo, o Defesa Pública da Alegria, festas como a do Dia da Biodiversidade, que também estavam gerando processos bem pontuais, mas que mantinham alguma ação. Tinha o Tutti Giorni, por exemplo, que é um acontecimento desse processo da cultura urbana, uma necessidade de ir para a rua que não tem apelo comercial. Houve também a ocupação da Praça da Matriz por um bom tempo, em alusão ao 15M da Espanha, as questões que estavam acontecendo na Europa, uma série de situações que estão indicando novas formas… E não só indicando, estão acontecendo por aqui. E há também surpresas, porque a explosão foi uma surpresa. Ninguém ia dizer que de uma hora para a outra iam surgir 20 mil pessoas na rua. Mas tudo o que estava acontecendo antes parecia mostrar que algo maior poderia ocorrer.
Em meio a isso, houve uma situação muito forte, que para mim é a situação mais bem acabada deste processo – e estou falando em primeira pessoa mesmo – que foi a ocupação da Câmara de Vereadores. Eu vi uma estabilidade fantástica, nada daquilo que era retratado como vandalismo, depredação, uma coisa não pensada. Havia um objetivo claro, que era o acesso às planilhas de custo das empresas de ônibus, que tinha sido negado pelos vereadores. Um elemento concreto, justo. Se tu colocares isso para qualquer pessoa ou cidadão, ele vai dizer: “é motivo, sim, para ocupar a Câmara de Vereadores”. E estavam ali partidos políticos, coletivos pequenos, pontos de cultura, sindicatos, houve um acordo para permanecer, pensar em outras pautas. Mesmo que se possa dizer “havia pessoas mais pensantes”, eram realizadas assembleias durante todo o tempo, qualquer um poderia se manifestar.
Sul21 – E bem pouco depois deste acontecimento político, não se perdeu parte do que o movimento havia conquistado?
Leandro Anton – Aquele (cenário construído na Câmara) era um elemento fantástico, mas logo depois tem um esfacelamento inclusive daquela organização. Durante um ano, olhamos um cenário instável. Mas olhando enquanto um processo maior, em virtude dos desafios que temos como país ou como estado, a escala é grande. Então o movimento local, que é instável, não tem como fazer frente. Agora, acredito que por dentro disso tem construções que estão avançando bastante. E cito a ocupação da Câmara como um exemplo de que é possível, assim como foi a vitória do morro Santa Tereza. Há questões possíveis, mas elas são pontuais. Mas tenho que dizer que esta é a análise de um militante, não de intelectual, e nem de alguém que fala por um movimento.
Penso que há um caminho construído e que não foi compreendido até agora pelas instituições, nem pelos grandes movimentos sociais. E, pelo contrário, em vez de buscar ali inspirações e renovação de como se portar diante das situações que não foram resolvidas pelos governos, que esses próprios movimentos apoiaram para chegar ao poder, resolveram diminuir este novo processo. Não foi só a mídia que desprezou o que aconteceu nas ruas. E acho que isso não ajuda, porque houve uma energia, houve alterações de votações, houve processos importantes, inclusive de segmentos sociais que não estavam conseguindo colocar suas pautas tanto no Congresso quanto na Câmara. Houve reversão de processos, como aconteceu lá no Rio de Janeiro em relação ao Museu do Índio, para ficar num exemplo. Ou seja, tem resultados concretos e reais, e não foram trazidos pelos movimentos tradicionais, pelos grandes movimentos sociais, que são ainda a referência desses grupos.
Essa galera que está ali tem referência exatamente nisso, ela não nega a existência deles e nem dos partidos que fizeram parte da vida de muitos que estão ali dentro, que foram fonte de inspiração e inserção no movimento. É ruim a postura dos movimentos sociais e das centrais sindicais em buscar explicação do que aconteceu desconstruindo esses grupos. É muito ruim também reproduzir o discurso de categorização entre “vândalo” e “manifestante”. Isso foi criado pela mídia, a maioria é manifestante e a minoria é vândalo. É uma relação com passividade, não é nem pacifismo, é com a passividade, numa busca para apaziguar. Mas não há o que apaziguar numa situação dessas, é preciso encontrar respostas concretas.
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Sul21 – Porto Alegre já passava por transformações urbanas antes da chegada dos megaeventos, mas com a chegada da Copa do Mundo a situação – principalmente da Zona Sul – não foi agravada, modificada com outro ritmo?
Leandro Anton – A situação em Porto Alegre é diferente se pensarmos em dez anos atrás, mas não em seis anos atrás. O Arroio Cavalhada foi o local do laboratório da aplicação da modalidade que destrói com todos os direitos dessas comunidades, que é o chamado bônus moradia. Isso foi feito a partir de 2007. Antes, Porto Alegre tinha uma política habitacional própria, municipal, de moradia. E temos situações ruins nesse período, mas o balanço é positivo daquela prática que era feita. E com recursos só do município, não se beneficiava como nesse período em que há o “Minha Casa, Minha Vida”. A cidade tinha uma política habitacional definida, sem contar com recursos de outras esferas governamentais.
O segundo marco é o seguinte: os acordos que estavam firmados aqui no Arroio Cavalhada eram para reassentamentos na região. O Programa Integrado Sócio-Ambiental (PISA) tinha áreas mapeadas naquela região, essa era uma prioridade. O fato é que com a alteração de governo municipal houve grandes mudanças, não só na habitação, mas em todos os setores da política pública de Porto Alegre. E o Arroio Cavalhada foi o laboratório do bônus moradia, que na época era inclusive de 40 mil reais, apenas. Então não tem uma unidade habitacional construída desde que começou o PISA em 2001… As primeiras estão saindo na Vila Hípica, que conseguiu a partir de sua associação de moradores, com o apoio institucional de uma vereadora. Assim, um projeto de lei desmembrou a área da Vila do conjunto do Jóquei Clube.
É a única coisa que está sendo construída desta maneira, e estamos em 2013, são 12 anos. O atual governo está desde 2005. Ou seja, a fase de projetos, de busca de financiamento, já havia sido concluída, tinha que executar, e como executou? Com o bônus moradia. Aquilo ali arrebentou com o movimento comunitário. Nesse aspecto, a casa não é um mero detalhe, porque não está dissociada do solo, do território. Porque enquanto estiver naquele terreno ali, tu tens um objeto de barganha. No momento em que tu pegas o bônus moradia ou o aluguel social, isso se perde. Aí tu estás longe da comunidade, sem qualquer poder. A perversidade é tão grande neste aspecto que as famílias não têm a exata dimensão, muitas vezes, de que os 40 mil reais, ou os 52 mil reais de agora, não solucionam a questão…
O que acontece agora com a Copa do Mundo é a continuidade de um projeto que já estava em curso em Porto Alegre. Mas não podemos ser ingênuos de achar que parte dos moradores que vivem em áreas irregulares não está com interesses associados, ou conseguiram se associar a esses interesses que são conduzidos pela especulação imobiliária e pelo governo municipal ou o que for. Aqui, o maior responsável é o governo municipal. Não diminuo, no entanto, a responsabilidade do governo federal porque é o financiador deste processo. E o financiador não deveria permitir que quem executa estas obras viole tantos direitos como está acontecendo nas remoções, principalmente na Avenida Tronco.
Sul21 – E de que maneira o terreno do Jóquei Clube e das cocheiras do hipódromo ainda está em disputa para abrigar a construção de moradias populares, como é a reivindicação do Comitê Popular da Copa?
Leandro Anton – Principalmente pelo fato de não ter nada construído naquela área até agora. Isso é o que resta, como é uma área particular ela pode ser desapropriada. Ainda é uma área em disputa, até porque juridicamente ela pode ter alguma reversibilidade, considerando como um ato inconstitucional o fato da Assembleia Legislativa e o governo não terem consultado a comunidade sobre uma área pública, como era esta. Ou seja, também é uma preocupação com aqueles terrenos que conseguimos (há oito terrenos no bairro Cristal que serviriam para a construção de moradia). Mesmo que tenha sido votada a lei, que haja um artigo que afirma que os terrenos são destinados às famílias atingidas pela duplicação da Avenida Tronco e por famílias que saíram de áreas de risco da região, mesmo assim, enquanto não haver moradias construídas haverá risco de reversão. Para a Avenida Tronco, agora o nosso grande desafio é construir essas casas.
Sul21 – Na Avenida Tronco, ainda é possível falar na possibilidade de resistência por parte dos moradores? Porque, com casas já derrubadas em muitas das quadras, a situação parece muito desfavorável.
Leandro Anton – Hoje de fato é um cenário desfavorável, mas já foi mais favorável no ano passado e no início deste ano. É preciso reorganizar o movimento comunitário, a articulação entre os coletivos. Estamos rearticulando o Comitê Popular, é difícil manter a militância durante mais de três anos, é algo desgastante, ainda mais sem muitas vitórias concretas. O que me deixa chocado é que a criminalização é dos movimentos sociais, mas deveria ser dos gestores públicos que deixaram o bairro chegar nesta situação.
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