Itaú e AMBEV querem "garantias" do governo de que não perderão dinheiro com os protestos durante a Copa de 2014. |
Texto de Carlos Vainer*
O fato de que temendo protestos na Copa de 2014, patrocinadores já apelam à presidente Dilma para intervenha a fim de evitar que os protestos atrapalhem o evento, é realmente um acontecimento revelador das relações entre capitalistas privados e estado no Brasil contemporâneo (veja AQUI a matéria da ESPN sobre o assunto).
Em primeiro lugar, porque revela o surgimento de uma nova categoria sócioeconômica, ou, como está em moda, uma nova identidade: “empresa patrocinadora da Copa”. As empresas dessa nova categoria não se definem pelo ramo em que atuam, nem pelo fato de serem nacionais ou estrangeiras, de capital aberto ou fechado. Não, sua identidade é a de serem patrocinadoras da Copa.
Elas estão preocupadas. E pedem “garantias de que o governo tentará coibir os protestos e manifestações durante a Copa e pediram um plano de ação neste sentido. O plano será desenvolvido em reuniões mensais até o início do Mundial, envolvendo outros patrocinadores”.
Aposto que se fizerem uma pesquisa de opinião entre estes capitalistas, todos eles se manifestarão pelo livre mercado, pela redução da intervenção do Estado na economia, pela privatização das empresas públicas. Afinal, são neoliberais, que acreditam que o livre jogo das forças de mercado constitui a melhor, diria mesmo a única forma de alocar os recursos da sociedade de modo a obter o máximo de produto interno bruto e de felicidade humana líquida. Mas, apesar dessa crença, querem garantias estatais... de que não vão ter prejuízos. Ora, se queriam se precaver, deveriam ter feito seguro, pois esta é a forma capitalista, de mercado, por meio da qual capitalistas sérios, que amam as forças de mercado e repudiam o Estado, se precavêm de riscos. Mas nossas empresas patrocinadoras da Copa conhecem uma maneira mais barata de proteger seus lucros: pedir que o Estado assegure que não perderão dinheiro.
Dos representantes das empresas, a presidenta Dilma ouviu um discurso preocupado. A Ambev e o Itaú afirmaram que fazem uma aposta de altos valores na Copa do Mundo e pediram garantias de que não teriam prejuízos por causa de eventuais manifestações. A presidenta prometeu fazer "tudo o que for preciso" para que não haja protestos.
Em segundo lugar, o evento revela a intimidade e familiaridade com que grupos capitalistas privados são recebidos pela presidente. Enquanto foram necessárias várias centenas de manifestações de muitos milhões de pessoas para que a presidente afirmasse que era necessário ouvir a “voz das ruas”, representantes do grande capital circulam quotidianamente pelos palácios oficiais, apresentando suas reivindicações, fazendo suas exigências e reforçando sua presença nos processos decisórios, numa permanente atualização do que tenho chamado de "democracia direta do capital".
Em terceiro lugar, fica a dúvida: o que fará a presidente para atender aos reclamos dos “patrocinadores da Copa”? Em que pensa a presidente quando afirma que fará "'tudo o que for preciso' para que não haja protestos”?
Não custa lembrar o que disse em seu discurso de 21 de junho (auge dos protestos no Brasil), importante, porém já esquecido, inclusive, ao que parece, pela própria presidente.
Ela disse:
“É a cidadania e não o poder econômico que deve ser ouvido em primeiro lugar”.
Ela disse:
“Os que foram ontem às ruas deram uma mensagem direta ao conjunto da sociedade e, sobretudo, aos governantes de todas as instâncias. Essa mensagem direta das ruas é por mais cidadania, por melhores escolas, por melhores hospitais, postos de saúde, pelo direito à participação. Essa mensagem direta das ruas mostra a exigência de transporte de qualidade e a preço justo. Essa mensagem direta das ruas é pelo direito de influir nas decisões de todos os governos, do legislativo e do judiciário”
Ela disse:
“as pautas dos manifestantes ganharam prioridade nacional” e que “temos que aproveitar o vigor dessas manifestações para produzir mais mudanças, mudanças que beneficiem o conjunto da população braisleira”.
No momento em que as forças reacionárias desensarrilham suas armas e as apontam para o coração da democracia, que é o direito de livre manifestação, soa grave uma presidente afirmar que “fará tudo o que for preciso” para que não haja protestos.
Mas se ela quisesse mesmo evitar protestos, poderia começar cumprindo o que anunciou em 21 de junho, isto é, ouvir a cidadania e não o poder econômico, em primeiro lugar. A menos que a cidadania a que ela se referisse fosse essa categoria especial de cidadãos que representam os interesses do capital, ou, mais ainda, os interesses dos capitais que patrocinam a Copa.
As tentativas de intimidar, constranger e reprimir protestos aparecem por toda parte. Em novas medidas legais, verdadeiras leis de exceção, como a tentativa de aprovar projeto de lei que cria o crime de terrorismo. Ou ainda, no famigerado decreto do governador do Rio de Janeiro, agora revogado, que pretendia, contra a lei, obrigar as empresas de telefonia a violar a privacidade de seus clientes sem ordem judicial. Ou na absurda pretensão de proibir o porte de máscaras em via pública. Ou na brutalidade com que as polícias militares, por todo o país, lançam-se à repressão de manifestações públicas.
Não estamos mais falando apenas de Copa ou Olimpíadas. Não estamos mais falando de direito à informação, à moradia, ao trabalho. Estamos falando de direito ao exercício das prerrogativas básicas da democracia: o direito de manifestar, o direito à livre expressão de ideias.
Tão ou mais estarrecedor que os ataques hoje desferidos contra este direito essencial é o silêncio de muitos dos que lutaram contra a Ditadura justamente para conquistarmos esse direito. Surpreende o silêncio de alguns filósofos e filósofas que, com sua inteligência e brilho, inspiraram e animaram muitas de nossas lutas nos anos 1980. Surpreende o silêncio de entidades importantes como a OAB, ABI, CNBB, que se engrandeceram nas lutas democráticas. Surpreende, até mesmo, o silêncio de militantes e políticos que, hoje no poder, deram os anos de sua juventude para que conquistássemos a democracia que os partidos em que militam hoje parecem pretender sufocar... para garantir os lucros das “empresas patrocinadoras da Copa” e outras mais?
É possível que alguns ainda não se tenham dado conta de que estamos vendo nascer o ovo da serpente. Mas é também provável que muitos deles estejam, hoje, acomodados, convencidos, como é tradição dos democratas brasileiros, de que não é a extrema direita, mas as forças populares e as manifestações de luta que ameaçam a democracia. Assim, Marilena Chauí retoma a ladainha que, desde sempre, foi a dos democratas burgueses, que têm mais medo do povo nas ruas que amor à democracia. É sempre assim: quando o povo se mobiliza, coloca em risco a democracia. Em outras palavras, a democracia e o direito de manifestação são fundamentais e devem estar assegurados... desde que o povo não os exerçam. Aliás, não foi para proteger a democracia dos avanços das lutas populares que os democratas fardados deram o golpe há 50 anos atrás?
Afinal, a democracia que pretendem é para ser exercida apenas pelos “homens bons”, como se dizia na era colonial. Uma democracia para ser exercida apenas pelos bem comportados, pelos que se acomodam à dominação, pelos que se submetem... e, claro, sobretudo pelos detentores do poder econômico, político e social. Uma democracia para ficar na “cristaleira” e somente ser utilizada nos banquetes de luxo aos quais os pobres não são convidados. Acontece que os “barrados no baile” querem democracia para eles também. E como são barrados nos banquetes e reuniões nos palácios, fazem sua democracia nas ruas, construindo novos e promissores espaços públicos. É essa democracia que ameaça os lucros dos “patrocinadores da Copa”. E por isso eles vão pedir, neoliberais convictos, a intervenção do Estado.
Está na hora de começarmos a constituir uma lista, bem mais ampla, de “patrocinadores da democracia”, que não pretendem preservar seus lucros, mas os princípios básicos do estado de direito democrático e republicano. Que tal uma campanha: "Seja patrocinador da democracia, e não da Copa ou das Olimpíadas".
Quantas empresas vão participar? Quantos prefeitos? Quantos governadores? Quantos partidos políticos? Quantos filósofos e intelectuais preocupados com os rumos do processo político?
* Carlos Vainer é professor titular do IPPUR/UFRJ (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Para apreciação:
ResponderExcluirhttps://edsonjnovaes.wordpress.com/2012/07/28/pai-de-quem-trocinio/